A vacuidade no campo das Constelações Fenomenológicas: abertura para o novo
- rosangelaferreirap3
- 20 de ago.
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Por Rosânggela Fêrreira
O conceito de vacuidade encontra paralelos significativos na fenomenologia. Se, no budismo, a vacuidade (śūnyatā) é compreendida como um vazio pleno de inter-relações e potencialidades (NAGARJUNA, 1997), em Husserl (2006) essa ideia ressoa na noção de epoché. A suspensão fenomenológica convida o pesquisador a colocar entre parênteses seus pressupostos e julgamentos prévios, para que o fenômeno se mostre tal como é.
No espaço das constelações fenomenológicas, essa suspensão não é apenas um procedimento metodológico, mas também um dispositivo clínico: sustentar a abertura do campo, sem antecipar conclusões, permite que as dinâmicas sistêmicas ocultas possam emergir. Assim, a vacuidade fenomenológica é condição para a emergência da verdade do sistema, revelada sem interferências do ego do constelador.
Na Psicanálise, encontramos um paralelo na proposta freudiana de atenção flutuante (gleichschwebende Aufmerksamkeit). Freud (1912) recomenda ao analista uma escuta que não privilegie nenhum detalhe em detrimento de outro, mas que acolha de forma igualitária tudo o que é dito. Tal postura implica uma abertura ao inconsciente do paciente e também ao inconsciente do próprio analista, que se coloca em posição de disponibilidade, sem a rigidez de hipóteses prévias.
Esse método remete à vacuidade enquanto atitude de não preenchimento: não se trata de impor sentido, mas de criar um espaço onde o sentido possa se constituir. Nesse aspecto, psicanálise e constelações compartilham um fundamento comum: o reconhecimento de que a transformação acontece no vazio entre o saber instituído e o que se manifesta como novo.
Bert Hellinger (2001) enfatiza que o trabalho fenomenológico exige um deixar-ser: “o campo mostra aquilo que precisa ser visto”. Essa postura aproxima-se da noção heideggeriana de Gelassenheit (HEIDEGGER, 2006), entendida como a serenidade que abre espaço para que o ser se manifeste em sua própria verdade.
Na prática das constelações, essa vacuidade não é inatividade, mas uma atenção radical ao que se revela no campo. É nessa abertura que emergem soluções novas, que não poderiam ser produzidas por raciocínio linear ou por tentativa de controle. O campo fenomenológico mostra, no silêncio e na pausa, ordens do amor (HELLINGER, 2001) que reorganizam vínculos e devolvem pertencimento.
A vacuidade pode ser compreendida, portanto, como um princípio epistemológico — que rompe com a lógica cartesiana de controle e previsão — e como uma postura clínica. O terapeuta, ao sustentar esse vazio fértil, possibilita que soluções emergentes venham do próprio sistema e não da imposição de um saber externo.
Essa compreensão dialoga com autores contemporâneos que defendem uma ciência mais integrativa e aberta à complexidade, como Morin (2011), ao propor um pensamento que reconheça a incerteza, a incompletude e a abertura como dimensões fundamentais do conhecimento.
A vacuidade, ao ser integrada ao espaço das constelações fenomenológicas, não representa ausência, mas sim potência. Ela é condição para o surgimento do novo, para a reorganização de vínculos e para a transformação da experiência humana diante do sofrimento. Ao articular filosofia oriental, fenomenologia, psicanálise e pensamento sistêmico, podemos compreender a vacuidade como chave de abertura para soluções criativas, que emergem justamente quando abandonamos a necessidade de controle e nos permitimos estar no vazio.
Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, 2006.
HELLINGER, Bert. Ordens do amor: um guia para o trabalho com constelações familiares. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
HUSSERL, Edmund. Investigações Lógicas. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 2006.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.
NAGARJUNA. Fundamental Wisdom of the Middle Way: Nāgārjuna’s Mūlamadhyamakakārikā. Translation and commentary by Jay Garfield. Oxford: Oxford University Press, 1997.

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