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A armadilha da mente desconectada da terapia: um olhar interdisciplinar sobre a fragmentação psíquica na contemporaneidade

  • rosangelaferreirap3
  • 6 de ago.
  • 5 min de leitura

Por Rosânggela Fêrreira  

 

Este artigo propõe uma análise interdisciplinar da desconexão psíquica observada em contextos clínico-terapêuticos, articulando contribuições da Psicanálise, da Psicologia Sistêmica e da Neurociência. Em um cenário marcado por hiperestimulação, aceleração do tempo e fragmentação dos vínculos, observa-se o predomínio de um funcionamento mental racionalizado, dissociado do corpo e da afetividade. A partir da escuta clínica e de referenciais contemporâneos como Gabor Maté, Daniel Siegel, Boris Cyrulnik e Byung-Chul Han, discute-se como essa desconexão compromete a saúde mental e o processo de subjetivação, propondo caminhos terapêuticos que favoreçam a reintegração da experiência vivida.

 

Palavras-chave: desconexão psíquica; subjetivação; trauma; interdisciplinaridade; saúde mental; Psicanálise; Neurociência; Sistêmica.

 

Introdução

 

O sofrimento psíquico contemporâneo manifesta-se, em grande medida, por um modelo de funcionamento dissociado: sujeitos que pensam demais, sentem pouco e não escutam os sinais do corpo. Essa cisão entre razão, emoção e sensação se expressa com frequência no setting terapêutico, quando o paciente chega buscando alívio, mas apresenta uma resistência implícita à implicação subjetiva. Tal fenômeno, que chamamos aqui de mente desconectada, traduz uma forma de defesa psíquica e neurobiológica frente a experiências traumáticas individuais e coletivas.

 

À luz da Psicanálise, da Sistêmica e da Neurociência, este artigo visa compreender essa armadilha da mente racionalizada e propõe um olhar clínico que favoreça a reintegração da subjetividade. Ao recorrer a autores como Freud, Winnicott, Cyrulnik, Hellinger, Maté, Siegel e Han, buscamos construir um diálogo que aponte para práticas terapêuticas mais integrativas e responsivas às complexidades da vida psíquica contemporânea.

 

A racionalização como defesa: escutas psicanalíticas do sofrimento

 

A Psicanálise ensina que todo discurso excessivamente racionalizado pode esconder uma defesa inconsciente contra o afeto intolerável. Freud (1923/2010) já alertava para a tensão entre o ego e as forças inconscientes, destacando que o sujeito nem sempre tem acesso pleno ao que o determina. A resistência — conceito central na teoria freudiana — manifesta-se, entre outros modos, pela intelectualização, isto é, a tentativa de elaborar a dor sem senti-la.

 

Winnicott (1975) amplia essa compreensão ao introduzir a noção de falso self, uma estrutura defensiva que atua para manter o sujeito adaptado às expectativas externas, em detrimento da expressão autêntica do self verdadeiro. Em muitos casos, o paciente que fala sem se implicar apresenta um discurso coerente e autocentrado, mas desconectado de sua vivência emocional e corporal — um saber sobre si que não se transforma em saber de si.

 

Lealdades invisíveis e dinâmicas transgeracionais: o olhar sistêmico

 

A Visão Sistêmica, especialmente a partir dos estudos de Bert Hellinger (2001) e Iván Böszörményi-Nagy (1986), destaca a influência das dinâmicas familiares inconscientes na constituição psíquica do sujeito. Padrões de repetição, exclusões sistêmicas e lealdades invisíveis podem promover formas sutis de alienação subjetiva. A mente desconectada, nesse contexto, pode representar a fidelidade inconsciente a um antepassado ou uma tentativa de reparar simbolicamente um trauma coletivo.

 

Conforme aponta Rupert Sheldrake (2011), os campos mórficos de memória familiar podem operar como matrizes de comportamento, influenciando o modo como o sujeito se posiciona no mundo. Assim, o afastamento de si mesmo pode ser compreendido não apenas como mecanismo individual, mas como parte de uma lógica sistêmica que visa preservar a coesão grupal e a ordem familiar.

 

Cérebro e trauma: a Neurociência da desconexão

 

As contribuições das Neurociências são fundamentais para compreender o impacto do trauma sobre a mente e o corpo. Segundo Daniel Siegel (2012), o trauma interfere na integração entre os sistemas neurais responsáveis pela autorregulação emocional, memória e percepção. Em situações de estresse extremo, o cérebro ativa circuitos de sobrevivência, desativando o córtex pré-frontal e priorizando áreas subcorticais, como a amígdala, o que compromete o processamento racional e emocional integrado.

 

Gabor Maté (2022) observa que a dissociação e a desconexão não são defeitos do indivíduo, mas adaptações neurobiológicas a ambientes inseguros. Nessa perspectiva, a mente que evita sentir está, na verdade, tentando proteger o sujeito de reviver experiências insuportáveis. Boris Cyrulnik (2001) também destaca que o trauma compromete a narrativa autobiográfica, dificultando a construção de uma identidade coerente.

 

A sociedade do desempenho e a exaustão subjetiva

 

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2015) contribui com uma análise crítica da sociedade contemporânea ao denunciar o modelo neoliberal de subjetivação, baseado no desempenho, na produtividade e na positividade tóxica. O sujeito atual internaliza a lógica da autoexploração, tornando-se ao mesmo tempo opressor e oprimido de si mesmo. Nesse cenário, a mente desconectada representa um sintoma cultural: a fragmentação do sujeito que precisa funcionar apesar da dor.

 

Han afirma que o excesso de estímulos e a hiperconectividade conduzem a uma “violência neuronal”, resultando em quadros de depressão, ansiedade e burnout. A saúde mental é, portanto, impactada não apenas por fatores intrapsíquicos, mas também por estruturas sociais que desvalorizam o descanso, o silêncio e a interioridade.


Caminhos terapêuticos para a reconexão

 

Diante desse panorama, a clínica contemporânea é convocada a oferecer espaços de escuta que não apenas favoreçam a fala, mas também a presença. Uma escuta que inclua o corpo, o campo relacional e as memórias não verbais. A integração de abordagens — psicanalítica, sistêmica e neurocientífica — permite construir uma prática mais sensível às múltiplas camadas do sofrimento.

 

A cura não se dá pela lógica, mas pela possibilidade de estar com o que foi fragmentado, nomear o indizível, e reconfigurar os vínculos internos e externos. Como propõe Siegel (2012), trata-se de promover a integração neuronal, na qual razão, emoção e sensação encontram um espaço comum de expressão.

 


Considerações finais

 

A mente desconectada da terapia não é apenas um desafio clínico, mas um fenômeno cultural e biopsíquico que requer um olhar interdisciplinar. Integrar Psicanálise, Visão Sistêmica e Neurociência não significa apenas somar saberes, mas reconhecer que o sofrimento humano é complexo, multifacetado e situado. O terapeuta contemporâneo é chamado a escutar o que se cala, a incluir o corpo que sente e a respeitar os contextos que moldam as narrativas subjetivas. Nesse percurso, a terapia se torna um lugar possível de reconexão — consigo, com os outros e com a própria história.

 


Referências Bibliográficas

 

BÖSZÖRMÉNYI-NAGY, Iván; SPARK, Geraldine M. Lealdade invisível: reciprocidade nas relações familiares. São Paulo: Cultrix, 1986.

 

CYRULNIK, Boris. Os patinhos feios: resiliência e autoestima nas crianças. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

FREUD, Sigmund. O ego e o id. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 2010. (Original publicado em 1923).

 

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

 

HELLINGER, Bert. Ordens do Amor. São Paulo: Cultrix, 2001.

 

MATÉ, Gabor. O mito do normal: trauma, doença e cura numa sociedade tóxica. São Paulo: Sextante, 2022.

 

SHELDRAKE, Rupert. A presença do passado: ressonância mórfica e os hábitos da natureza. São Paulo: Cultrix, 2011.

 

SIEGEL, Daniel J. O cérebro que se transforma: a neurobiologia da transformação pessoal. Porto Alegre: Artmed, 2012.

 

WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

 
 
 

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