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O peso de querer que o outro queira

  • rosangelaferreirap3
  • 14 de dez.
  • 4 min de leitura

Quando o cuidado, silenciosamente, se transforma em controle Por Rosânggela Fêrreira


Há um território delicado nas relações humanas onde o cuidado deixa de ser presença e passa a ser condução. Um espaço sutil em que a preocupação, antes afetuosa, começa a carregar a expectativa de que o outro deseje, escolha e viva de acordo com aquilo que acreditamos ser o melhor. Nem sempre percebemos quando cruzamos essa fronteira. Muitas vezes, inclusive, fazemos isso em nome do amor.


Esta reflexão nasce justamente desse ponto de tensão: o desejo de proteger, orientar ou ajudar que, quando atravessado por angústias não reconhecidas, transforma-se em controle emocional. Um controle que raramente se apresenta de forma explícita, mas que se infiltra nos vínculos sob a máscara do cuidado.


Ao integrar contribuições da psicanálise, do pensamento sistêmico e da neurociência, proponho aqui uma reflexão sobre o movimento psíquico de querer que o outro queira aquilo que eu quero e sobre os custos emocionais, relacionais e subjetivos dessa dinâmica.


O desejo nunca é neutro

Na perspectiva psicanalítica, o desejo não emerge no vazio. Ele se constrói na relação com o outro, atravessado por faltas, expectativas e fantasias inconscientes. Quando tentamos direcionar o desejo alheio, o que frequentemente está em jogo não é apenas o bem-estar do outro, mas a tentativa de apaziguar nossas próprias angústias.


O medo do abandono como “se ele escolher diferente, vai se afastar?” , a dificuldade de lidar com a falta e a frustração, marcas do processo de castração e o narcisismo ferido com a necessidade de ver nosso ideal refletido no outro compõem o pano de fundo desse movimento. Assim, cuidar pode se tornar, sem que percebamos, uma estratégia inconsciente de autopreservação psíquica.


Existe um narcisismo sutil que se esconde na frase aparentemente generosa: “Eu só quero o seu bem.” Muitas vezes, ela carrega uma condição silenciosa: desde que o seu bem coincida com a minha visão de mundo. Quando isso acontece, o vínculo deixa de ser encontro e passa a ser confirmação.


Quando o cuidado invade o território do outro

Já o pensamento sistêmico nos ajuda a compreender que cada pessoa ocupa um lugar específico dentro dos sistemas aos quais pertence. Há destinos que não nos cabem, escolhas que não nos competem e aprendizados que não podem ser feitos por procuração. Quando ultrapassamos esses limites, mesmo movidos por boas intenções, criamos desequilíbrios profundos.


Ao tentar conduzir o outro, assumimos um lugar que não é nosso, como o de salvador, orientador absoluto ou garantidor de felicidade. O resultado é a perda da simetria no vínculo, a fragilização da autonomia e a criação de lealdades inconscientes baseadas em culpa e medo de decepcionar. Relações assim tendem a adoecer: ou se tornam dependentes, ou silenciosamente ressentidas.


Cuidar, na lógica sistêmica, é sustentar o espaço para que o outro se responsabilize por sua própria vida. Controlar é ocupar esse espaço no lugar dele.


O cérebro diante da diferença

Por outra perscpetiva a neurociência oferece uma camada importante para compreender por que é tão difícil permitir que o outro seja diferente de nós. Quando expectativas são frustradas ou quando o outro escolhe um caminho inesperado, o cérebro interpreta essa diferença como ameaça. A amígdala é ativada, sinalizando perigo; o sistema de apego entra em alerta; o córtex pré-frontal busca explicações e justificativas para restaurar a sensação de segurança.


Nesse contexto, o controle aparece como tentativa de autorregulação emocional. Ao tentar regular o comportamento do outro, buscamos, na verdade, regular nossas próprias ansiedades, medos e estados de desorganização interna. Controlar torna-se uma forma de evitar o contato com dores mais profundas: o medo da perda, da solidão ou da impotência.


A manipulação que não se reconhece como tal

As formas mais nocivas de manipulação não são agressivas nem evidentes. Elas se apresentam como cuidado, conselho ou proteção:


“Estou dizendo isso pelo seu bem.”

“Confia em mim, eu sei o que é melhor.”

“Tudo o que faço é porque te amo.”


Quando essas falas carregam expectativa de obediência, elas geram vínculos baseados em culpa, submissão e medo da discordância. O outro passa a silenciar seus desejos, a duvidar de suas percepções e a se afastar de sua própria autenticidade para preservar o vínculo. Com o tempo, instala-se uma desconexão profunda: perde-se a espontaneidade, a confiança e o respeito mútuo que são pilares de qualquer relação segura.


O adoecimento de quem controla

É importante reconhecer que quem controla também sofre. Ninguém consegue corresponder integralmente às expectativas de outro. O resultado é frustração constante, sensação de ingratidão e um vazio narcísico que se aprofunda. Ao receber apenas versões adaptadas do outro e não sua presença genuína, o controlador se vê cercado, paradoxalmente, de solidão.


Amar sem capturar

A maturidade afetiva começa quando conseguimos sustentar a diferença sem interpretá-la como rejeição. Amar, nesse nível, é reconhecer o outro como sujeito de desejo e não como extensão das próprias carências.


Há uma frase que marca esse amadurecimento: “Eu desejo o seu bem, mesmo quando ele não coincide com aquilo que eu desejo.”

Esse é o amor que liberta. O cuidado que não obriga. A presença que acompanha sem conduzir.


Uma ética relacional possível

Antes de oferecer conselhos, talvez seja mais ético oferecer perguntas. Perguntas que devolvem ao outro o lugar de autoria:

  • O que faz sentido para você agora?

  • O que seu coração pede?

  • Qual caminho é verdadeiro para você?


E, sobretudo, perguntas dirigidas a nós mesmos:


  • Isso é sobre o outro ou sobre a minha ansiedade?

  • Estou ofertando ou impondo?

  • O que estou tentando controlar em mim?


Essas pausas reflexivas salvam vínculos. E, muitas vezes, salvam a nós mesmos. Portanto:

  • Cuidar não é decidir.

  • Amar não é moldar.

  • Ajudar não é conduzir o destino do outro.


O vínculo saudável nasce quando respeitamos a alteridade e sustentamos a autonomia. Quando o amor deixa de ser captura e se transforma em espaço de amadurecimento compartilhado. É nesse campo ético entre presença, limite e respeito que as relações se tornam, de fato, humanas e saudáveis.


Referências Bibliográficas

BOWLBY, J. Apego e perda. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2011.

LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

HELLINGER, B. Ordens do amor. São Paulo: Cultrix, 2007.

DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SIEGEL, D. J. Mindsight: a nova ciência da transformação pessoal. São Paulo: nVersos, 2011.

MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento. São Paulo: Palas Athena, 2001.

 
 
 

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