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A hiperidealização do outro e a dificuldade de desvincular de relações

  • rosangelaferreirap3
  • 14 de dez.
  • 5 min de leitura

Por Rosânggela Fêrreira


Há vínculos que não se sustentam pelo encontro entre duas pessoas reais, mas pela manutenção de uma fantasia necessária. A hiperidealização do outro é um desses fenômenos silenciosos que, ao mesmo tempo em que promete amparo e sentido, produz aprisionamento psíquico. Não se trata de um erro moral, nem de fragilidade de caráter, tampouco de simples falta de vontade para “ir embora”. Trata-se de uma organização complexa do psiquismo, ancorada na história emocional, nos padrões sistêmicos de pertencimento e nos circuitos neurobiológicos do apego.

Desvincular-se de uma relação hiperidealizada não é romper com alguém apenas; é desativar uma função psíquica que sustentou a própria sobrevivência emocional. Por isso, o rompimento não é um gesto pontual, mas um processo de reconstrução interna.

A fabricação da fantasia: quando o outro ocupa o lugar do ideal

A hiperidealização emerge quando a realidade interna encontra um vazio não simbolizado. Esse vazio costuma ter origem em experiências precoces de insuficiência afetiva como falhas de cuidado, de reconhecimento ou de segurança emocional que não puderam ser elaboradas no tempo em que ocorreram. Na vida adulta, o psiquismo busca reparar aquilo que faltou, e o outro passa a ser investido como resposta a essa carência.

Nesse movimento, o outro deixa de ser percebido como sujeito e passa a funcionar como símbolo. Pode ser o parceiro amoroso, uma amizade, um mentor, um terapeuta ou uma liderança espiritual. A função é a mesma: sustentar uma promessa de completude.

Idealização como mecanismo psíquico Na tradição psicanalítica, Freud descreveu a idealização como um mecanismo pelo qual o objeto amoroso é elevado à condição de eu ideal, tornando-se depositário das aspirações narcísicas do sujeito. O investimento libidinal não se dirige ao que o outro é, mas ao que ele representa. Lacan aprofunda essa compreensão ao indicar que o desejo se estrutura a partir da falta: idealizamos aquilo que supomos possuir o que nos falta.

Na hiperidealização, esse mecanismo se intensifica. As falhas do outro são negadas, relativizadas ou reinterpretadas; os sinais de inadequação são recalcados; a realidade é continuamente distorcida para sustentar a fantasia. A relação não se constrói sobre fatos, mas sobre necessidade. Amar, nesse contexto, confunde-se com depender.

Pertencimento ferido e repetição sistêmica

Sob a perspectiva sistêmica, especialmente nas leituras das Constelações Familiares, a hiperidealização pode ser compreendida como uma repetição inconsciente de vínculos primários interrompidos ou insuficientes. A ausência emocional de uma mãe pode gerar a busca incessante por acolhimento absoluto; a indisponibilidade paterna pode se traduzir em uma fome de validação; contextos familiares caóticos frequentemente produzem a idealização de figuras percebidas como estáveis e salvadoras.

O problema não está no desejo de vínculo, mas no deslocamento de funções: o outro passa a ocupar um lugar que não lhe pertence, geralmente o lugar de um cuidador emocional que falhou no passado. O vínculo atual torna-se, assim, uma tentativa de reorganizar a história, ainda que às custas do presente.

O cérebro do apego e da recompensa

Do ponto de vista neurobiológico, a hiperidealização encontra terreno fértil nos sistemas de recompensa e apego. A ativação dopaminérgica intensifica a expectativa, a euforia e o foco obsessivo; a liberação de ocitocina reforça a sensação de fusão e pertencimento; o circuito mesolímbico passa a responder ao outro de maneira semelhante ao que se observa em padrões de dependência.

Essa neuroadaptação explica por que a pessoa idealizada se torna vivenciada como insubstituível. Não se trata de amor romântico no sentido maduro, mas de um cérebro condicionado a buscar regulação emocional em uma única fonte.

A construção da dependência: por que desvincular é tão difícil

Desvincular-se de uma relação hiperidealizada implica retirar do outro funções estruturantes do próprio funcionamento psíquico. Em geral, três pilares sustentam essa dependência afetiva.

O primeiro é a função de regulação emocional: o outro torna-se calmante, âncora contra a ansiedade, antídoto para o medo e a dor. O segundo é a função identitária: a sensação de existir e ter valor passa a depender do olhar e da escolha do outro. O terceiro é a função reparadora: a fantasia de que, finalmente, as feridas antigas serão curadas por meio desse vínculo.

Quando esses três elementos se articulam, o apego deixa de ser escolha e se transforma em amarra.

Os sinais clínicos da hiperidealização

A hiperidealização manifesta-se de forma comportamental, emocional e corporal. Observa-se atenção excessiva às necessidades do outro, dificuldade persistente em reconhecer limites e falhas, racionalizações constantes de atitudes nocivas, submissão, autocancelamento e vigilância contínua do humor alheio.

No campo emocional, predominam o medo intenso de desapontar, a ansiedade diante de afastamentos, a culpa por desejar sair da relação e a sensação de impotência sem o vínculo. Neurobiologicamente, não é incomum o surgimento de sintomas semelhantes aos de abstinência: inquietação, taquicardia, ruminância, pensamentos intrusivos e uma sensação de ruptura interna diante da ideia de separação.


Desidealizar como gesto de descolonização afetiva

A desidealização não é um ataque ao outro, mas um retorno a si. Trata-se de retirar da pessoa idealizada as projeções que, em algum momento, foram necessárias para sobreviver emocionalmente. Esse processo exige maturidade psíquica, pois implica aceitar frustrações, reconhecer limites, diferenciar amor de carência e assumir responsabilidade pela própria história.

Desidealizar dói porque desmonta uma fantasia que sustentava o equilíbrio interno. Mas é justamente esse movimento que devolve o sujeito à realidade — e, com ela, à autonomia.


O medo da perda e o medo do vazio

Quando o rompimento parece impossível, dois medos fundamentais costumam operar em conjunto. O primeiro é o medo de perder o outro e, com ele, o regulador emocional, o senso de valor, a fantasia de reparação e a identidade construída em função do vínculo. O segundo é o medo de reencontrar a si mesmo.

O vazio que emerge após o afastamento não é novo; é o mesmo vazio que sempre esteve presente, agora sem a fantasia que o encobria. Por isso, o sofrimento é tão intenso. Não é o outro que falta, mas aquilo que não pôde ser vivido, nomeado ou cuidado na própria história.

Reconstruir-se após a hiperidealização não significa endurecer, mas aprender a sustentar o próprio afeto. É um caminho de autorresgate, no qual o amor deixa de ser busca de salvação e passa a ser encontro possível entre sujeitos inteiros.

Referências Bibliográficas

BOWLBY, John. Attachment and Loss. New York: Basic Books, 1969.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1914/1996.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1988.

PANKSEPP, Jaak; BIVEN, Lucy. The Archaeology of Mind: Neuroevolutionary Origins of Human Emotions. New York: W. W. Norton, 2012.

SCHULTZ, Wolfram. Dopamine reward prediction error signalling: a two-component response. Nature Reviews Neuroscience, v. 17, n. 3, 2016.

SIEGEL, Daniel J. The Developing Mind. New York: Guilford Press, 2012.

SPITZ, René. O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 1965.

VON BERTALANFFY, Ludwig. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 1975.


 
 
 

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