A clínica psicanalítica diante do sofrimento humano: entre a singularidade e a urgência da saúde mental
- rosangelaferreirap3
- 25 de set.
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Diálogos com neurociências e pensamento sistêmico complexo
Por Rosânggela Fêrreira
Introdução
O sofrimento humano constitui um dos temas centrais da clínica psicanalítica desde Freud. É uma condição inseparável de desamparo que constitui o sujeito. Freud (1917/1996), ao refletir sobre o luto e a melancolia, evidenciou como a perda, o vazio e a impossibilidade de retorno às condições anteriores marcam profundamente a vida psíquica¹. Longe de ser um fenômeno individual isolado, ele se inscreve no entrelaçamento de corpo, linguagem, cultura e laços sociais. A clínica, nesse sentido, é o espaço em que esse sofrimento encontra possibilidade de expressão, escuta e elaboração. Contudo, na contemporaneidade, a urgência em torno da saúde mental exige que a psicanálise dialogue com outros campos do saber, ampliando sua compreensão sobre as formas de padecimento subjetivo.
O sofrimento e a tradição psicanalítica
Freud, em O mal-estar na civilização, já apontava para o caráter inevitável da dor psíquica, oriunda do conflito entre desejos pulsionais, exigências do superego e pressões do laço social¹. Lacan, por sua vez, sublinha que o sofrimento comparece como efeito estrutural da falta e da divisão do sujeito². Birman destaca que o sintoma é uma resposta ao excesso de sofrimento não simbolizado³, enquanto Safra sustenta que a clínica deve ser um espaço de hospitalidade diante do sofrimento do outro, lugar no qual a palavra pode ressignificar a experiência e abrir vias de criação⁴.
Ao mesmo tempo, autores contemporâneos como Figueiredo, Dunker e Rocha têm insistido na necessidade de articular a clínica à dimensão social e política da saúde mental. Figueiredo⁵ sublinha que a escuta clínica só se sustenta quando reconhece os atravessamentos históricos e coletivos que configuram o sofrimento. Dunker⁶ lembra que a clínica psicanalítica não pode se restringir à neutralidade, mas precisa implicar-se nos modos de subjetivação produzidos pela cultura. Rocha⁷, por sua vez, enfatiza a urgência de repensar as práticas clínicas em articulação com as políticas públicas de cuidado, sob risco de reforçar desigualdades e exclusões.
Neurociências e sofrimento: um diálogo possível
As descobertas das neurociências oferecem aportes que, longe de reduzirem a subjetividade ao funcionamento cerebral, podem enriquecer a clínica psicanalítica. Pesquisas sobre neuroplasticidade mostram que experiências de trauma, estresse e adversidades precoces produzem alterações nos circuitos cerebrais ligados à emoção, à memória e ao controle da atenção¹¹. Esse dado confirma, em outro registro, aquilo que a psicanálise sempre sustentou: que o sofrimento é inscrito no corpo e se organiza nos vínculos.
Na perspectiva da neurociência afetiva, Damásio afirma que “os sentimentos constituem o fundamento de nossos processos racionais, orientando escolhas e decisões”¹². Já LeDoux demonstra que “as memórias emocionais, quando ativadas por estímulos ameaçadores, podem cristalizar padrões de reação defensiva”¹³. Esses achados dialogam com a noção psicanalítica de que o sintoma é, ao mesmo tempo, defesa e mensagem: uma forma de sobrevivência psíquica que pode ser reinscrita pela palavra e pela experiência transferencial.
Pensamento sistêmico e a complexidade do sofrimento humano
O pensamento sistêmico complexo oferece outra via para compreender a densidade do sofrimento. Morin sustenta que “os fenômenos humanos só podem ser compreendidos em sua multidimensionalidade, em rede e em constante interação”¹⁴. Capra e Luisi, de forma convergente, afirmam que “a vida é organizada em processos interconectados, nos quais saúde e adoecimento emergem como propriedades relacionais dos sistemas vivos”¹⁵.
Maturana acrescenta a dimensão da biologia do amor, segundo a qual “o humano se constitui na relação, e a ruptura dos vínculos de cuidado gera sofrimento psíquico e social”¹⁶.
De forma complementar, Bert Hellinger propõe que o sofrimento humano muitas vezes está enraizado em dinâmicas ocultas dos sistemas familiares. Para ele, “os destinos difíceis que atravessam gerações são mantidos por lealdades invisíveis que operam inconscientemente”¹⁷. A perspectiva das Ordens do Amor permite compreender que o sofrimento individual pode ser expressão de uma desordem sistêmica, quando alguém, por exemplo, carrega dores que pertencem a outros membros de sua família. Essa abordagem amplia o horizonte clínico, ao mostrar que a escuta do sofrimento inclui também os vínculos intergeracionais e a pertença a uma rede de relações.
Nesse sentido, a clínica pode ser concebida como espaço de restauração de vínculos: lugar no qual o sujeito reencontra a possibilidade de reorganizar sua experiência de ser-no-mundo a partir do encontro com a palavra, com a presença do outro e com o reconhecimento das forças sistêmicas que o constituem.
Considerações finais
A articulação entre psicanálise, neurociências e pensamento sistêmico permite uma compreensão mais ampla e complexa do sofrimento humano. Sustentar a singularidade subjetiva, sem desconsiderar os atravessamentos biológicos, relacionais, culturais e intergeracionais, é um desafio ético e político da clínica contemporânea.
A clínica psicanalítica, nesse horizonte, não é apenas espaço terapêutico, mas também prática de resistência: resistência contra a redução do sofrimento a diagnósticos rápidos, contra a fragmentação dos sujeitos e contra a desumanização do cuidado. Trata-se de apostar em uma clínica que, ao mesmo tempo, acolhe a dor singular, reconhece os vínculos que a constituem e abre espaço para a criação de novas formas de vida.
Notas de rodapé
1. FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
2. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
3. BIRMAN, J. Maldade e sofrimento psíquico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
4. SAFRA, G. A clínica psicanalítica: hospitalidade e criação. São Paulo: Ideias & Letras, 2004.
5. FIGUEIREDO, L. C. Psicologia, uma (nova) introdução. São Paulo: EDUC, 2004.
6. DUNKER, C. I. L. Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo: Annablume, 2011.
7. ROCHA, Z. Clínica e políticas públicas: psicanálise na saúde mental. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
8. KOLB, B.; WHISHAW, I. Q. Fundamentals of human neuropsychology. 7. ed. New York: Worth Publishers, 2015.
9. DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
10. LEDOUX, J. Ansiedade: usando o cérebro para entender e curar o medo e a ansiedade. Rio de Janeiro: Record, 2015.
11. MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005.
12. CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.
13. MATURANA, H. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
14. HELLINGER, B. Ordens do amor: um guia para o trabalho com constelações familiares. Petrópolis: Vozes, 2001.
Referências Bibliográficas
BIRMAN, J. Maldade e sofrimento psíquico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.
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