Desistir simbolicamente do outro que se ama
- rosangelaferreirap3
- 20 de nov.
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Entre a renúncia psíquica, a regulação sistêmica e a reorganização neural
Por Rosânggela Fêrreira
Desistir simbolicamente do outro que se ama é um processo de reorganização subjetiva que atravessa dimensões psicanalíticas, sistêmicas e neurobiológicas. Trata-se da renúncia a um vínculo que, embora significativo, tornou-se inviável, exigindo do sujeito um trabalho de luto, reposicionamento relacional e reequilíbrio neural. Este artigo discute o fenômeno a partir da psicanálise, da teoria sistêmica dos vínculos, das neurociências e de perspectivas humanistas contemporâneas, evidenciando como tal desistência não é abandono, mas um gesto de cuidado de si e de preservação da vitalidade psíquica.
A experiência de amar alguém que não pode, não quer ou não consegue sustentar o vínculo coloca o sujeito diante de limites internos e externos. Freud (2010) descreve que situações de perda concretas ou simbólicas convocam um “trabalho de desligamento libidinal”, exigindo que o Eu se reorganize. Renunciar simbolicamente ao outro é uma dessas situações-limite.
No âmbito das relações, essa renúncia não é apenas emocional: ela implica um reposicionamento do sujeito dentro do sistema ao qual pertence. Como destaca Hellinger (2016), vínculos que rompem as ordens do pertencimento geram sofrimento e desordem.
A neurociência contemporânea, por sua vez, demonstra que vínculos afetivos ativam sistemas complexos de recompensa, apego e ameaça (PANKSEPP, 1998; SIEGEL, 2016). Desistir simbolicamente é, portanto, um processo profundo que atravessa psiquismo, corpo e história.
Renúncia psíquica na psicanálise: o luto do impossível
Freud (2010), ao abordar luto e melancolia, descreve que o Eu precisa desinvestir gradualmente a libido do objeto amado para não adoecer. No caso da desistência simbólica, não há morte real, mas há a morte de uma possibilidade. Trata-se do “luto sem cadáver”, em que a dor se volta para dentro, exigindo elaboração.
Essa renúncia envolve também reconhecer fantasias e projeções. Winnicott (2000) diz que amadurecer implica suportar a desilusão: perceber que o outro não virá “ao encontro da fantasia”, mas com seus limites e verdades. Assim, desistir simbolicamente é abandonar a ilusão de que o amor pode salvar o que o outro não sustenta.
Do ponto de vista psicanalítico, tal movimento preserva o Eu. Green (2002) lembra que o excesso de investimento em um objeto não responsivo gera estados de esvaziamento narcísico e dor afetiva intensa. A renúncia devolve ao sujeito sua energia vital e sua capacidade de criar novas formas de relação.
Perspectiva sistêmica: devolver destinos, romper repetições
A abordagem sistêmica entende que vínculos adoecem quando violam as ordens naturais de pertencimento, hierarquia e equilíbrio (HELLINGER, 2007). O sujeito que tenta salvar, curar ou conduzir o outro abandona seu próprio lugar.
Desistir simbolicamente é um ato de respeito às fronteiras sistêmicas. Como afirma Maturana (1997), “amar é permitir que o outro seja o que ele é”, e não tentar moldá-lo ao nosso imaginário. A renúncia devolve ao outro seu destino e, devolve ao sujeito seu próprio centro.
Esse movimento também interrompe repetições transgeracionais de apego ambivalente ou fusão. Schneider (2010) destaca que muitos vínculos são reedições de lealdades invisíveis. A desistência simbólica, nesse contexto, libera energia e reposiciona o sistema inteiro.
A neurociência da renúncia: dor social, apego e reorganização neural
A neurociência confirma que o sofrimento diante da perda ou da impossibilidade ativa circuitos semelhantes aos da dor física. Estudos mostram que o córtex cingulado anterior e a ínsula participam tanto da dor social quanto da física (LEDOUX, 2001), ajudando a explicar por que rupturas afetivas são percebidas como ameaça vital.
Quando o vínculo adoece o sistema nervoso
Porges (2011), com a Teoria Polivagal, demonstra que relações inseguras ativam estados de hiperalerta, bloqueando a capacidade de autorregulação. Feldman (2007) aponta que vínculos disfuncionais alteram ritmos autonômicos e reduzem a resiliência biológica. Nesse cenário, manter o vínculo pode significar manter o corpo em ameaça crônica.
A renúncia e a reorganização neural
Quando o sujeito renuncia simbolicamente, inicia-se um processo de reorganização:
diminuição dos circuitos de dependência afetiva (PANKSEPP, 1998);
estabilização do eixo HPA e redução de cortisol;
aumento da neuroplasticidade em regiões de autocontrole e tomada de decisão (SIEGEL, 2016);
reequilíbrio entre sistema simpático e parassimpático (PORGES, 2011).
Cozolino (2014) descreve que a mudança de padrão relacional modifica redes neurais associadas à narrativa interna (default mode network), permitindo novas histórias sobre si e sobre o amor.
Assim, desistir simbolicamente não é apenas um ato psicológico, mas um processo biológico de restauração da homeostase.
A dimensão existencial: quando o amor precisa ser transformado
Frankl (2017) lembra que o sentido da vida não está em evitar a dor, mas em dar direção a ela. Desistir simbolicamente do outro é um gesto que dá direção ao sofrimento: ele não anula o amor, mas o transforma.
Rogers (2005) por sua vez descreve que escolhas autênticas emergem quando o sujeito retorna a si. A desistência, aqui, não é abandono, mas compromisso com a própria integridade.
Neff (2020) mostra que práticas de autocompaixão favorecem a reorganização afetiva, permitindo que a pessoa lide com a dor sem se violentar.
Assim, desistir simbolicamente do outro que se ama é permitir que o amor sobreviva dentro de si, sem se autodestruir.
Portanto, a desistência simbólica do outro amado é um processo complexo, que articula luto, cuidado, autorregulação e maturidade. A psicanálise ilumina o desinvestimento libidinal e a renúncia às fantasias. O pensamento sistêmico destaca o reposicionamento e a devolução de destinos. A neurociência evidencia a reorganização neural e autonômica. A dimensão existencial integra tudo isso, afirmando que renunciar pode ser um gesto de preservação e dignidade afetiva.
Não se trata de deixar de amar, mas de reaprender a amar de um modo que não destrua o Eu.
Referências Bibliográficas
COZOLINO, Louis. The Neuroscience of Human Relationships: Attachment and the Developing Social Brain. New York: W. W. Norton, 2014.
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FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2017.
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LEDOUX, Joseph. O cérebro emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
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