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Luto como travessia - uma leitura complexa do sofrimento humano

  • rosangelaferreirap3
  • 22 de set.
  • 3 min de leitura

Por Rosânggela Fêrreira


O luto não é algo a ser resolvido, mas uma experiência a ser atravessada. Mais do que um obstáculo a superar, ele se apresenta como um processo de metamorfose que convoca o sujeito a se transformar diante da ausência. A Psicanálise, o pensamento sistêmico complexo de Edgar Morin e as contribuições das Neurociências oferecem chaves distintas, mas complementares, para compreender esse atravessamento.


Na Psicanálise, o luto é concebido como um trabalho psíquico: uma elaboração lenta, em que o sujeito é convocado a desinvestir libidinalmente daquilo que se perdeu para reintegrar-se ao fluxo da vida. Freud (1917/2011) descreveu esse processo como doloroso e inevitável, já que a ausência da pessoa amada exige uma reconfiguração das energias psíquicas, permitindo que, com o tempo, novas ligações afetivas possam emergir. Cada luto, no entanto, é singular, refletindo a história e a constituição subjetiva de quem o vive. Lacan aprofunda essa discussão ao mostrar que o luto não se reduz ao desligamento libidinal, mas toca o núcleo da experiência do sujeito em relação à falta. Para ele, a perda confronta o sujeito com a castração simbólica, isto é, com a impossibilidade de completude. O objeto perdido, seja uma pessoa ou aquilo que ela representava, não é simplesmente substituível, pois aponta para a dimensão estrutural da falta que nos constitui (LACAN, 1964/1998). Nesse sentido, o luto é também a experiência de habitar o vazio deixado pelo Outro, sem a ilusão de preenchê-lo totalmente. É um tempo de reorganizar o desejo e de reinscrever-se no campo simbólico, reconhecendo que algo irremediavelmente se foi, mas que a vida segue no movimento da linguagem e dos vínculos.


Edgar Morin (2005), por sua vez, nos convida a pensar o luto na perspectiva da complexidade. A morte de alguém não se limita a uma perda individual: ela reverbera em toda a rede de relações que sustentava. O sistema, ao perder uma de suas partes, precisa se reorganizar. Nesse sentido, o luto não é apenas dor, mas também um movimento de reconfiguração, em que ausência e presença se entrelaçam de modo paradoxal. Morin lembra que a vida se tece na dialógica entre ordem e desordem, morte e renascimento. Atravessar o luto é, portanto, reconhecer-se dentro desse tecido complexo, onde cada perda é também um convite a recriar sentidos.


As Neurociências ampliam essa compreensão ao mostrar como o cérebro e o corpo reagem diante da perda. Estudos indicam que áreas relacionadas à dor social e ao apego — como a amígdala e o córtex cingulado anterior — são ativadas quando nos deparamos com a ausência de alguém significativo, revelando que a dor do luto é, também, uma experiência corporal (EISENBERGER, 2012). Contudo, a plasticidade neural oferece caminhos de transformação. Como destaca Doidge (2007), o cérebro tem a capacidade de reorganizar-se, criando novas conexões que permitem a integração da perda e a abertura para outras experiências de afeto e pertencimento.


Assim, o luto pode ser compreendido como um movimento de metamorfose. Ele expõe a vulnerabilidade humana, mas também a potência de recriação. É atravessando a dor que se torna possível reconstituir vínculos, redesenhar significados e reconfigurar a própria existência. Entre a ruptura e a continuidade, o luto nos convida a habitar a complexidade da vida, onde a morte não é apenas fim, mas também um chamado para novos começos.


Referências Bibliográficas


DOIDGE, Norman. The brain that changes itself: stories of personal triumph from the frontiers of brain science. New York: Viking, 2007.


EISENBERGER, Naomi I. The pain of social disconnection: examining the shared neural underpinnings of physical and social pain. Nature Reviews Neuroscience, v. 13, n. 6, p. 421-434, 2012.


FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1917). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas, v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatros conceitos fundamentais da Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.


MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005.

 
 
 

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