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Pertencimento e Afeto na Saúde Mental: entre vínculo, reconhecimento e cuidado

  • rosangelaferreirap3
  • 3 de jul.
  • 3 min de leitura

Por Rosânggela Fêrreira


Falar em saúde mental é falar sobre laços. Muito além da ausência de sintomas, estar mentalmente saudável envolve a capacidade de construir relações significativas, viver experiências de afeto e se sentir pertencente a contextos onde somos reconhecidos e acolhidos em nossa subjetividade. O pertencimento — essa experiência profunda de “fazer parte” — constitui uma base essencial para o desenvolvimento emocional saudável e, em muitos casos, atua como fator protetivo diante do sofrimento psíquico.


No campo da Psicanálise, Freud já destacava que o ser humano é um ser do laço, marcado pela alteridade desde o início de sua constituição psíquica. O "Outro" é estruturante: é no campo do desejo e do olhar do outro que nos constituímos como sujeitos (FREUD, 1915). Lacan aprofunda essa leitura ao afirmar que o sujeito é efeito da linguagem e da inscrição simbólica, e que o reconhecimento pelo outro é condição para a existência subjetiva (LACAN, 1966).


Do ponto de vista neurocientífico, as pesquisas sobre o cérebro social mostram que a necessidade de vínculo é biológica. O sistema nervoso central é moldado pelas interações precoces, e o afeto — especialmente quando mediado por presença sensível e responsiva — regula o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, modulando reações ao estresse (SIEGEL, 2012). Estudos em neurobiologia do apego mostram que o acolhimento e a conexão promovem regulação emocional e segurança interna, enquanto a exclusão ou negligência geram marcas profundas, podendo predispor transtornos mentais como depressão e ansiedade (COZOLINO, 2014).


Na abordagem sistêmica, o pertencimento é um dos princípios fundamentais das constelações familiares. De acordo com Bert Hellinger (2001), todos têm o mesmo direito de pertencer a um sistema, e a exclusão — mesmo que simbólica — gera desordens e repetições inconscientes, muitas vezes traduzidas em sintomas ou padrões relacionais destrutivos. Quando alguém é excluído, outro pode “tomar o seu lugar” como forma de compensação inconsciente, adoecendo psíquica ou emocionalmente.


Assim, o pertencimento não é apenas uma experiência relacional, mas uma necessidade existencial. É no encontro com o outro que o sujeito pode se sentir visto, validado, e portanto, real. O afeto, quando ofertado de forma genuína, funciona como linguagem de cuidado e reconhecimento. Em contextos de violência simbólica, desigualdade ou abandono emocional, a ausência de afeto não apenas fere, mas desorganiza o eu, gerando sofrimento profundo.


A saúde mental, nesse sentido, deve ser compreendida como um campo relacional, e não apenas individual. Intervenções terapêuticas eficazes são aquelas que promovem não apenas insight, mas reparação simbólica de vínculos, abertura ao afeto e construção de pertencimentos saudáveis. Isso inclui espaços de escuta sensível, práticas coletivas de cuidado e políticas públicas que reconheçam o impacto social da exclusão.


Em tempos de adoecimento psíquico crescente, como demonstram os relatórios da OMS (2022), precisamos olhar com seriedade para o modo como estamos (ou não) cuidando do afeto e da experiência de pertencimento nos lares, escolas, empresas e instituições. Afinal, como disse Winnicott (1975), "não existe bebê sem um cuidador": somos todos, em alguma medida, seres uns dos outros.


Referências bibliográficas


COZOLINO, Louis. The Neuroscience of Human Relationships: Attachment and the Developing Social Brain. 2. ed. New York: W.W. Norton & Company, 2014.


FREUD, Sigmund. O Inconsciente (1915). In: FREUD, S. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


HELLINGER, Bert. Constelações Familiares: O reconhecimento das ordens do amor. Petrópolis: Vozes, 2001.


LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1966.


SIEGEL, Daniel J. The Developing Mind: How Relationships and the Brain Interact to Shape Who We Are. 2. ed. New York: Guilford Press, 2012.


WINNICOTT, Donald W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1975.


WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Mental Health Report: Transforming Mental Health for All. Geneva: WHO, 2022.

 
 
 

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