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Relacionamentos líquidos: impactos na saúde mental e regulação emocional

  • rosangelaferreirap3
  • 7 de out.
  • 3 min de leitura

Por Rosânggela Fêrreira


Vivemos um tempo em que os laços afetivos parecem se dissolver na mesma velocidade em que se formam. Zygmunt Bauman (2004) denominou esse fenômeno de liquidez, um estado em que nada é feito para durar, em que vínculos, compromissos e pertencimentos se tornam instáveis. Essa liquidez, ao migrar para o campo das relações digitais, intensifica uma sensação de fluidez permanente: tudo pode ser substituído, refeito, descartado. E é justamente essa ausência de enraizamento emocional que tem cobrado um preço alto sobre a saúde mental contemporânea.


Nas redes, a presença se mede por curtidas e respostas instantâneas, e a ausência é vivida como rejeição. O olhar do outro, antes mediador da construção do eu, tornou-se um espelho fragmentado, onde buscamos incessantemente validação e reconhecimento. Essa dinâmica cria um ciclo de excitação e vazio: o prazer efêmero da conexão é rapidamente seguido por uma sensação de insuficiência, de não ser visto o bastante, amado o bastante, escolhido o bastante.


A neurociência mostra que o cérebro é profundamente sensível aos laços sociais. Relações seguras e estáveis ativam circuitos de dopamina e ocitocina, associados ao bem-estar, à confiança e à regulação emocional (GOLEMAN, 2006; SIEGEL, 2010). Em contrapartida, relações instáveis, pautadas pela incerteza e pela rejeição, ativam respostas de estresse crônico, aumentando a liberação de cortisol e comprometendo a autorregulação emocional (LEDOUX, 1998). O sistema nervoso oscila entre hiperexcitação (na expectativa da resposta, do contato) e colapso (na ausência do retorno).


A psicanálise também nos ajuda a compreender esse movimento. Na liquidez dos tempos digitais, o sujeito se vê capturado por uma lógica de consumo afetivo: o outro é desejado não por quem é, mas pelo que representa momentaneamente em termos de prazer, distração ou validação. Essa objetificação sutil alimenta uma forma de narcisismo relacional, em que o encontro perde profundidade e o vínculo se torna utilitário. Assim, o amor , entendido como experiência de alteridade, dá lugar ao matching rápido, à ilusão de compatibilidade, à substituição instantânea.


Donald Winnicott (1965) nos lembra que a capacidade de estar só é um indicador de maturidade emocional. Contudo, a era digital parece reforçar o oposto: a intolerância ao vazio, ao silêncio, à espera. O sujeito contemporâneo, ao buscar constante conexão, evita o contato consigo mesmo e com a angústia da falta, componente essencial para a formação da identidade e da empatia.


No campo da saúde mental, o resultado é um aumento de quadros de ansiedade, solidão e desregulação emocional. A incapacidade de sustentar a frustração e o medo de rejeição tornam-se traços comuns de uma geração conectada, mas emocionalmente exausta. As relações líquidas exigem pouca responsabilidade afetiva e, ao mesmo tempo, deixam um rastro de feridas invisíveis, um vazio que o excesso de estímulos digitais não preenche.


Para resgatar o equilíbrio, é preciso reconectar-se ao tempo do vínculo, um tempo mais lento, que permita o encontro verdadeiro e a presença autêntica. Isso implica desenvolver a capacidade de suportar o silêncio, a ausência e a imperfeição do outro. A regulação emocional se fortalece quando o sujeito se ancora internamente, quando o valor próprio não depende apenas do olhar externo, mas de uma base afetiva sólida e consciente.


Em última instância, curar a liquidez das relações talvez signifique recuperar a densidade do afeto: reaprender a estar, a escutar, a se comprometer. Na era da conexão incessante, o maior desafio emocional é, paradoxalmente, sustentar a presença real, consigo e com o outro.



Referências Bibliográficas


BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.


GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional: a teoria que redefine o que é ser inteligente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.


LEDOUX, Joseph. The emotional brain: the mysterious underpinnings of emotional life. New York: Simon & Schuster, 1998.


SIEGEL, Daniel J. The mindful brain: reflection and attunement in the cultivation of well-being. New York: W.W. Norton & Company, 2010.


WINNICOTT, Donald W. The maturational processes and the facilitating environment. London: Hogarth Press, 1965.

 
 
 

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1 comentário


anastratigos_16
08 de out.

Curioso que hoje debrucei-me sobre a modernidade líquida, onde busca por satisfação pessoal sobrepõe as conexões. Muito rico seu artigo.🍷

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